O gás extraído do xisto está transformando a produção de energia nos
Estados Unidos e poderá tornar o país autossuficiente em 2035. A
novidade significa uma revolução econômica e política, mas traz
consequências perigosas ao meio ambiente – e protestos no mundo todo. O
Brasil também já entrou na era do xisto.
Nada como uma revolução tecnológica para virar o mundo de cabeça para
baixo e obrigar cientistas e governos a revisar os conceitos e refazer
as previsões. Quem diria que os Estados Unidos, o maior consumidor de
energia do mundo, poderiam se tornar autossuficientes em 2035? Pois esse
é o prognóstico da Agência Internacional de Energia (IEA, em inglês) no
relatório 2012, o
World Energy Outlook, ao analisar as
transformações por que o país vem passando desde que uma rocha – o xisto
– e um polêmico meio de extrair petróleo e gás – o fraturamento
hidráulico, mais conhecido como
fracking – ganharam peso na
produção energética americana. A extração do gás contribui para a
recuperação econômica do país, mas abre perspectivas sinistras ao meio
ambiente, alarmando os ecologistas.
Os EUA possuem enormes reservas de xisto, mas até 2006 os métodos
disponíveis para extrair combustível da rocha eram caros e não
compensavam o investimento. Naquele ano, porém, empresas de petróleo e
gás começaram a usar o
fracking nessas áreas. O resultado não
tardou: já existem mais de 20 mil poços em operação no país, e o gás
natural, que até 2000 representava 1% da produção americana de energia,
saltou para 30% em 2010 e poderá chegar a 50% em 2035.
Embora alguns especialistas afirmem que o tempo de produção de cada
um desses poços não superará 15 ou 20 anos, a dimensão das reservas
norte-americanas de xisto garante uma boa longevidade ao setor. “Os
suprimentos de gás natural agora economicamente recuperáveis do xisto
nos EUA poderiam acomodar a demanda doméstica do país por gás natural
nos níveis atuais de consumo por mais de cem anos”, anunciaram os
pesquisadores Michael McElroy e Xi Lu, da Universidade Harvard, no
artigo “Fracking’s Future”, publicado na edição de fevereiro de 2013 da
Harvard Magazine.
Usina para o fracking do xisto na província de Sichuan, China
Preços baixos e menos poluição
Em geral favorável às energias renováveis, o governo do presidente
Barack Obama tem apoiado politicamente a produção do gás de xisto, mesmo
com a controvérsia ambiental que cerca a questão. Em primeiro lugar, o
gás natural é o menos poluente dos combustíveis fósseis, uma vantagem
para um país que usa carvão e petróleo para gerar energia. A Agência
Ambiental Americana (EPA, na sigla em inglês) credita a melhora geral da
poluição atmosférica no país nos últimos anos ao aumento no uso do gás
de xisto.
Em segundo lugar, as vantagens econômicas são indiscutíveis. O gás de
xisto fez o preço do insumo cair nos EUA, nos últimos anos, de US$ 12
para US$ 3 por milhão de BTU (sigla para British Termal Unit, “unidade
térmica britânica”, medida usada para gás). Para comparar, o preço do
gás convencional no Brasil custa entre US$ 12 e US$ 16 por milhão de
BTU. A queda de preços faz os EUA importarem menos petróleo, explica o
físico José Goldemberg, “uma vez que aquele combustível vem substituindo
derivados do petróleo tanto na indústria quanto no transporte”. O país
passou até a exportar gás.
A terceira razão é geopolítica: a autossuficiência energética
livraria os EUA da dependência de fornecedores problemáticos e/ou
potencialmente hostis, como os países árabes, a Venezuela e a Rússia.
Como efeito colateral, a saída do mercado desse megacomprador baixaria
os preços do petróleo e até poderia inviabilizar alguns projetos de
produção, salienta Goldemberg. “Até a exploração do pré-sal no Brasil
poderia ser afetada por essa queda de preços”, adverte o físico.
Nas proximidades da cidade de Nova York, o xisto é abundante e aparece em placas, na superfície do terreno
Na avaliação da IEA, o Brasil é o décimo colocado em reservas de gás
de xisto tecnicamente recuperáveis, com 6,3 trilhões de metros cúbicos
de reservas, basicamente no Centro-Sul. Para a diretora-geral da ANP,
Magda Chambriard, porém, as reservas em terra podem superar as do
pré-sal e chegar a 14,16 trilhões de metros cúbicos. “Isso ainda precisa
ser comprovado”, ressalva ela. “Temos de investir e saber o potencial
do país.”
O Brasil não tende a se atirar ao gás de xisto, pois mal começou a
exploração da camada do pré-sal, mas a nova riqueza não escapa aos olhos
do governo. Das 72 áreas leiloadas pela Agência Nacional do Petróleo
(ANP) leiloou em novembro de 2013, 54 envolviam bacias de xisto.
Empresas como Petrobras, HRT, OGX, Orteng, Cemig e Petra já demonstram
interesse na extração do gás de xisto.
Protestos contra o fracking do xisto, no Canadá
Trâmites habituais
A polêmica que cerca o
fracking não representa problema, de
acordo com as autoridades. A ANP reconhece que faltam estudos sobre os
impactos ambientais do método. Um comunicado à imprensa, em 13 de maio
passado, afirma que “o tema do fraturamento hidráulico tem causado
alvoroço na imprensa mundial, pois seus riscos não foram esclarecidos
plenamente”. Mas a agência previa que o leilão de novembro seguiria os
trâmites habituais, com as áreas “previamente analisadas quanto à
sensibilidade ambiental pelo Ibama e pelos órgãos estaduais
competentes”.
O secretário de Minas e Energia, Marco Antônio Almeida, considera que
bastam algumas adaptações para dar conta das variáveis envolvidas.
“Teremos algumas exigências adicionais (em relação aos leilões
habituais), como fraturamento com poço revestido, cimentação mais
adequada e projeto aprovado pela ANP”, afirma. Por seu lado, o
Ministério do Meio Ambiente informa – olimpicamente –, que não tem
relação com o tema.
Na seara ambientalista, porém, a dupla fracking-gás de xisto causa
engulhos. “O único argumento por trás da exploração é o econômico”, diz
Carlos Rittl, coordenador do programa Mudanças Climáticas e Energia da
organização ambientalista WWF-Brasil, que critica a ausência de
discussão sobre os aspectos sociais e ambientais da questão e a guinada
do Brasil rumo aos combustíveis fósseis, na contramão do que recomenda o
aquecimento global.
Na Inglaterra, um boneco monstruoso representando o fracking é levado por manifestantes contrários ao uso dessa tecnologia
“Há uma clara vontade política para que a exploração por meio de
fracking aconteça, especialmente após as recentes avaliações muito
otimistas sobre o potencial de gás de xisto em terra, no Brasil”, afirma
Antoine Simon, da divisão europeia da organização internacional Amigos
da Terra. “Até agora, não existe nada específico sendo estudado pelo
Ibama, Ministério do Meio Ambiente ou ANA (Agência Nacional de Águas)”,
lamenta o ex-deputado Fabio Feldmann (PV).
De qualquer forma, não custa pensar como São Tomé e aguardar para
ver. Afinal, no pré-sal os combustíveis já estão prontos para extração,
enquanto a exploração do gás de xisto envolve uma série de indefinições.
“No Brasil, pelo menos até agora, não temos legislação específica para o
gás não convencional nem incentivos fiscais ou financeiros que aumentem
a atratividade do investimento”, afirma Adriano Pires, diretor do
Centro Brasileiro de Infraestrutura. “As reservas nós já temos. Se a
produção vai se dar em 2 ou 10 anos, depende da vontade do governo de
enfrentar os gargalos que prejudicam o mercado de gás no Brasil.”
A extração do xisto betuminoso
costuma promover destruição em vasta escala do terreno circundante.
Isso é o que acontece nessa zona do Canadá
Rocha transformadora
Xisto é o nome popular da rocha denominada folhelho. Uma de suas
variações, o xisto betuminoso, contém querogênio nos poros, uma mistura
de compostos químicos orgânicos a partir da qual se produz
hidrocarbonetos como óleo e gás (sobretudo metano). Estima-se que os
depósitos de xisto betuminoso no mundo equivaleriam a um volume entre
2,8 trilhões e 3,3 trilhões de barris de óleo recuperável, enquanto as
reservas provadas da Arábia Saudita, o maior produtor mundial, eram de
265,4 bilhões de barris em 2011. Já as reservas de gás de xisto seriam
de 187,51 trilhões de metros cúbicos. Confira a seguir os países que
abrigam as maiores jazidas do mundo.
Reservas tecnicamente recuperáveis de gás de xisto
(em trilhões de metros cúbicos)
China
|
36,10
|
EUA
|
24,41
|
Argentina
|
21,92
|
México
|
19,28
|
África do Sul
|
13,73
|
Austrália
|
11,21
|
Canadá
|
10,99
|
Líbia
|
8,21
|
Argélia
|
6,54
|
Brasil
|
6,40*
|
Fonte: IEA, 2009
* Só considera a Bacia do Paraná
Impactos ambientais
O fraturamento hidráulico, ou
fracking, é conhecido desde a
década de 1940, mas o aumento nos custos da exploração de petróleo e gás
viabilizou economicamente sua utilização nos últimos anos. Os poços
abertos para trazer à superfície os combustíveis contidos no xisto são
inicialmente perfurados no sentido vertical, em geral até 2 mil metros
de profundidade. Quando se atinge a camada desejada, entra em cena a
inovadora perfuração horizontal, numa extensão que costuma variar entre
300 e 2.000 metros.
Por esse duto se injeta água, a uma pressão bastante alta, misturada
com areia e produtos químicos. A manobra causa fraturas nas rochas, por
onde é liberado o combustível. Este sobe com a água para tanques de
armazenagem, onde os produtos são separados.
Após ser retirado das rochas de xisto pela tecnologia do fracking, o gás é canalizado e levado aos consumidores
O fracking está longe de ser unanimidade. Na Europa, ele é permitido
no Reino Unido e na Polônia, mas já foi proibido na França e na
Bulgária. Nos EUA, os Estados de Nova York, Pensilvânia e Texas
aprovaram regulamentações exigentes relativas ao método. Os principais
problemas são os seguintes:
1)
Vazamento – Muitos depósitos de xisto estão abaixo de
aquíferos. Se a vedação do poço tiver falhas, produtos químicos usados
no fracking poderão ser liberados na água. Embora um executivo da
Halliburton tenha sido notícia em 2011 ao beber o fluido de fracking
utilizado pela empresa, para mostrar que ele é seguro, há dúvidas sobre a
composição desse material. Uma pesquisa da Universidade Duke (EUA)
detectou um aumento da concentração de metano na água potável na
vizinhança dos poços, que pode ocasionar incêndios ou explosões.
2)
Contaminação – A mistura de água, areia e produtos
químicos injetada nos poços sobe gradualmente para a superfície, podendo
contaminar o solo e a água.
3)
Consumo de água – Retirar as imensas quantidades de água
usadas no processo pode prejudicar os ecossistemas da região. Calcula-se
que um poço normal exija em média entre 11 milhões e 30 milhões de
litros de água durante sua vida útil.
4)
Terremotos – Embora cientistas britânicos afirmem no
Journal of Marine and Petroleum Geology
que o fracking não causa abalos sísmicos importantes, não há consenso
sobre o tema. Para eliminar o problema, um dos autores do estudo, o
professor Richard Davies, da Universidade de Durham, sugere evitar
perfurações perto de falhas tectônicas.
5)
Poluição originária do processo – Um estudo da Universidade Cornell divulgado em 2011 na revista
Climatic Science
estima que a pegada de carbono do processo de extração do gás de xisto
seja até 20% maior do que a do carvão, o mais “sujo” dos combustíveis
fósseis.
Área de extração do xisto em São Mateus do Sul, no Paraná
Xisto paranaense
O Brasil explora o xisto comercialmente desde 1972, quando a
Petrobras abriu sua refinaria de Industrialização do Xisto, a SIX, em
São Mateus do Sul (PR). A cada dia, cerca de 7 mil toneladas de xisto
são retiradas do solo por técnicas de mineração, moídas e submetidas a
altas temperaturas. Desse processo são obtidos diariamente 4 mil barris
de petróleo, além de derivados como o enxofre.
A atividade apresenta dois impactos ambientais salientes. O primeiro,
ligado ao processo de abertura das minas, envolve a retirada da
vegetação e do solo. O segundo, relacionado ao processamento e refino, é
a emissão de gases-estufa. A Petrobras afirma que controla as emissões e
recupera em escala industrial as áreas exploradas desde 1979. Um estudo
da Universidade Federal do Paraná feito em 2009 reforça essa tese, ao
mostrar que o solo original e o recuperado tinham composição química bem
parecida.
Por outro lado, uma pesquisa do Instituto Ambiental do Paraná, órgão
fiscalizador do Estado, revela que a SIX foi multada em 2004 e 2006 por
descumprir normas de qualidade de água. Outro estudo, de Helvio Rech, da
Universidade Federal do Pampa (RS), detectou que a exploração do xisto
está diretamente relacionada à incidência de problemas respiratórios na
população de São Mateus do Sul.