Entre as muitas referências expressas a Deus, à família e ao Brasil,
que marcaram a votação do impeachment na Câmara dos Deputados, no dia 17
último, repetiu-se mensagem silenciosa, porém antiga e certamente muito
mais perigosa: a de que a política é terreno exclusivo daquelas
pessoas. Segundo essa compreensão, a participação política do cidadão,
da mais tênue a mais intensa, estaria limitada e teria como
destinatários exclusivos os ocupantes de cargos eletivos e tradicionais
detentores do poder de decisão. Assim, invariavelmente, ou seríamos
vítimas dos representantes eleitos, ou culpados por eles e elas estarem
ali, ou finalmente teríamos a obrigação moral de escolher novos nomes.
A reserva do protagonismo a representantes eleitos e a consequente
negação da possibilidade de realizações políticas fora do âmbito da
política institucional e partidária resume uma concepção que conhecemos
bem e que vemos reproduzida, conscientemente ou não, nos meios de
comunicação e nos debates em espaços públicos, redes sociais e até na
Academia. Trata-se, no entanto, de uma falsificação.
Em São Paulo, professores e servidores colaboram num projeto de
fortalecimento da gestão pública e qualificação da participação social;
no Pará, organizações se unem para elaborar estratégia de
desenvolvimento de regiões do estado; no Rio de Janeiro, um grupo
oferece sistema para avaliar o nível de transparência do Legislativo e
do Executivo; em Manaus, um instituto discute manejo de recursos
naturais e gestão ambiental e territorial; em Santa Catarina, um projeto
distribui aplicativo de celular que permite interagir com agentes
políticos, sugerir iniciativas e partilhar avaliações; em 19 estados,
uma rede de associações incentiva a participação da sociedade na
fiscalização do uso de recursos públicos.
Essas e muitas outras são iniciativas reais, com resultados concretos,
tocadas Brasil afora por pessoas comuns, reunidas em organizações
sociais, associações civis, fundações e mesmo em grupos informais. Ao
contrário do que se possa imaginar, ao assumirem para si um papel
central na ação política, não negam o governo ou a política partidária;
muitas, aliás, envolvem parceria e diálogo com a administração pública e
detentores de mandato.
As iniciativas acima têm em comum com a concepção usual de política a
disposição de participar dos processos de decisão; a ambição de orientar
grupos sociais; a defesa de interesses (coletivos). Por outro lado, têm
de radicalmente diferente não colocarem em posição central, como
objetivo, a conquista e a conservação do poder.
Afinal, como também tem sido lembrado com certa insistência no processo
de impeachment, a Constituição da República dispõe que todo o poder
emana do povo. A sociedade exercê-lo de fato, de maneira organizada,
consciente e efetiva, é não só caminho legítimo, como extremamente
necessário.
O isolamento e o enfraquecimento das relações sociais, já ensinava
Hanna Arendt há mais de 60 anos, em contexto específico, são condições
para o estabelecimento de regimes que se fundam exatamente no alheamento
dos indivíduos. Não por acaso, em nosso cenário atual, a sensação de
impotência é efeito desejado por quem repete a mensagem do domínio
exclusivo do espaço político pelos políticos.
A voz das ruas, infelizmente, não muda esse quadro de maneira decisiva.
Essa voz, embora legítima, acaba igualmente fadada a, no máximo,
influenciar as ações dos que se consideram os titulares exclusivos da
política. Os muros que se multiplicam são produto desse processo, que
precisa ser superado, e não necessariamente de uma separação essencial
entre as pessoas.
Divergências não são muros: são peças essenciais na construção de
governos, de políticas públicas e, sim, de consensos. A participação
direta da sociedade também. O momento em que vivemos exige não é uma
nova geração de políticos, mas a geração de novos políticos. E esses
políticos — sem voto, sem mandato, sem base de apoio partidário — somos
nós.
Rodrigo Chia
Vice-presidente do Observatório Social de Brasília, servidor público, mestre em Direito Constitucional
Publicado no Correio Braziliense de 25/4/2016 (p. 11, Opinião)
Fonte: Observatório Social de Brasília
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